jueves

Terça-feira de um dia de Agosto, 10h30 da manhã, quarto 845

Bateu antes de entrar, não havia ninguém. Levou o carrinho de limpeza para dentro do quarto, onde encontrou o maior caos jamais visto. Hummm...aqui tinha havido guerra! E da boa! Tentou lembrar-se da cara do ou da ou dos possíveis hóspedes mas não conseguiu, talvez nunca se tivesse cruzado com eles... Deviam ser da classe dos hóspedes discretos e sigilosos que raramente se deixam ver, pensou. Costumam vir por trabalho e normalmente não dão quase trabalho nenhum: fazer a cama, mudar toalhas e repor shampoos, sabonetes e afins. São pessoas importantes que vêm por negócios e que quase não passam tempo no quarto, só vêm dormir.
Mas pelo estado em que se encontrava o 845, não se podia tratar de um hóspede discreto e sigiloso de todo: roupa espalhada pelo chão e pela cama mal desfeita, a poltrona e a mesa pequena fora do seu sítio, todos os objectos de higiene no chão da casa de banho, o que teria acontecido?
L., empregada desde havia pouco tempo naquele que era o melhor hotel da cidade (ou isso diziam os chefes), enquanto levava a cabo as suas tarefas, ia imaginando que tipo de guerra tinha passado pelo quarto 845.

A hóspede, agora L. sabia que se tratava de uma mulher, tinha deixado no chão o seguinte escrito:

Se, naquela noite d’Estio
te tivesse dito quem realmente sou
não terias acreditado.

Analiso de memória
O teu sólido personagem
E aterrorizo-me sozinha
... volto a descobrir...
a raiva das tuas mãos
e o veneno da tua língua.

Se, naquela noite d’Estio
Te tivesse dito que só desejava um corpo
Não terias acreditado.

E se não analisasse de memória
O teu personagem
Descobriria a sublime ternura
Das tuas mãos
E a fantasia dos impulsos da tua língua.


L. não conseguiu deixar de pensar naquele escrito que, num papel meio amachucado, a tinha deixado turvada e perturbada. Será que a guerra daquela noite tinha alguma relação com o documento encontrado? Mas realmente, o que quereriam dizer aquelas palavras?

Terminou o trabalho do 845 e passou ao quarto seguinte sem conseguir apagar a imagem do estado do 845 e do escrito encontrado. Secretamente desejou que a hóspede não fosse embora.

miércoles

Quarta-feira de um dia de Agosto, 10h30 da manhã, quarto 845

L. não se tinha conseguido libertar daquilo que havia visto no dia anterior no 845: o estado do quarto, as palavras encontradas, as suas emoções... Voltou à mesma hora, exactamente às 10h30, com a esperança de encontrar dentro aquela mulher. L. queria saber como era o seu rosto e como se movia, no fundo tudo o que conseguisse no pouco espaço de tempo que iria ter caso a hóspede estivesse no quarto. Bateu à porta, como de costume e, não obteve resposta. Meteu na fechadura a chave que abria todas as portas e aí estava o 845, limpo e arrumado. Após a súbita desilusão, L. iniciou as suas tarefas que, naquela quarta-feira e no 845, eram poucas. Mudou lençóis e toalhas, repôs o shampoo, gel e afins e começava a esvaziar os caixotinhos do lixo onde, novamente encontrou aquela letra que lhe era algo familiar. L. não perdeu tempo em desfazer a bola que alguém tinha feito daquela folha e eis o que encontrou:

Pasolini

Olhando para o céu a preto e branco
Soube que era Ele o que havia de chegar
E que não teria quer esperar por nenhum Outro

Vendo o mundo ao contrário
Percebi o ensurdecimento dos ouvidos
E de outras coisas que se sabem

Com uma imagem fumada
Descobri o que eram as mortais angústias
E pedi que me acompanhassem 3 homens

...Mas nunca blasfemei!!!

Agora sim estava realmente perdida, se do escrito anterior podia tentar entender alguma coisa, agora resultava-lhe completamente impossível.
Como lhe chamou a atenção a penúltima estrofe, tentou relacioná-la com a noite anterior que tinha dado origem ao caos que L. tinha encontrado. Hummmm... mas o nexo parecia-lhe algo forçado.